Tudo está escuro.
Mais uma vez.
Há um silêncio. Todos estão me encarando como se assistissem a um animal lançado ao chão. A luz suave oriunda do rio Aqueronte ilumina-me rostos familiares. Primeiro apareceram as prostitutas, seguidas pelas outras: as dos fihos ilegítimos, as amantes.
Os portões brilhavam em prata e, no topo, os dizeres ressoavam como um zumbido agudo, uma brisa feita de farpas:
"Abandone toda esperança, aquele que por aqui entrar."
É tarde? O crepúsculo me engana. A enorme boca de metal engole a mim e ao barco. O calor é tanto que corrói as bordas do meu corpo. Arranham meu ventre mãos angulosas de pele fina, ardendo por irromper na morte. Eu, que gestei humilhada na certeza da carne, vejo minha cabeça rebentar do meu útero, rasgo-me, rasgo-me. Aqui estou eu. Sugo o sangue de minhas narinas como se hóstia e vinho fossem. Agora, estão aí um milhão de fogueiras.
Jeanne implora por mais alguns segundos.
Todas as de Zugarramurdi.
Todas as de Salém.
Stella Maris ainda segurava suas sandálias brancas.
Tudo está escuro. Estamos em um quarto grande; há centenas de camas perfeitamente arrumadas com lençóis vermelhos. As doenças e pragas a postos, eu me arrastando pelos cabelos. Espectros em longos vestidos de seda branca com nesgas infinitas rodopiando perdidas entre os batentes das portas. Ouço as trombetas da morte, um cortejo de mulheres se espreme entre muros de sangue e fogo. Um animal agoniza ao chão, sem ossos - todo órgãos, pura carniça lisa. Me assisto nascer e morrer, todos os dias.
Persigo as sombras por aqui, não há muito mais o que fazer. Certas noites, aquelas em que me sinto mais corajosa, caminho com as minhas velhas meias, pé ante pé, pelos vastos corredores.
Aqui estão as brutais, as barulhentas, as bacantes.
Sarah, Sylvia,
Camille, Ercília,
Maura Cançado.
Caminho corredor abaixo, meus olhos me arrastam ferozmente. Estou diante da porta mais uma vez. Espio pela fechadura todos os meus desejos.
Mais um silêncio.
Minhas mãos se encurtam e minhas pernas se afinam, tomo a cor negra azulada, meu ventre a milímetros do chão. Os meus olhos são milhares. Enxergo para além das paredes, para além do tempo. Eu não sou matéria, sou constituída de forças. Escaparia entre os meus dedos de antes. Passo sem dificuldade pelo buraco da fechadura. Dentro da sala, não há gravidade. As roupas, os cabelos, tudo aqui flutua. Aqui não há corpos, apenas uma massa orgânica que paira e dança coesa.
Uma mão se estende, ela me tira do chão suavemente.
Todos os Mártires são testemunhas da morte.
As vozes se completam pouco a pouco.
Elas me chamam:
"Segure-se a mim,
segure-se a mim,
dançaremos até incendiar-se os nossos pés.
Não há qualquer outra maneira de sobreviver
ao fim do mundo, há?"
Escrito por Antonio Negrini e Carolina Melgarejo